Nenhuma empresa/instituição pode obrigar o trabalhador (ou candidato a emprego) a fazer exames de hepatite. Nem tampouco pode exigir ter conhecimento do resultado. Você tem o direito de manter sigilo sobre sua condição de saúde. Não existe profissão que não possa ser exercida por um portador de hepatite B ou C e, portanto, não há justificativa para que o exame seja solicitado.
A base legal que fundamenta essa questão foi muito bem discutida no artigo
"É ilegal pedir exame de HIV no admissional?", escrito por Marcos Henrique Mendanha para o site
Saúde Ocupacional. Como mencionado no próprio artigo, a legislação brasileira é mais avançada em relação ao HIV que outras doenças similares devido à repercussão que o tema provoca - e eu acrescentaria que também pela mobilização das ONGs em defesa dos portadores de HIV nas décadas anteriores. Mas a Justiça Brasileira têm dado às outras doenças de transmissão por meio de sangue tratamento análogo ao do HIV. Confira as informações abaixo e, no caso de discriminação, procure o Ministério Público.
Quando se fala na solicitação de sorologia para HIV em exames relativos ao trabalho, a polêmica facilmente se instaura.
Pela efervescência da matéria sobram normativas entre as quais citamos algumas:
Portaria 1.246 / 2010 do Ministério do Trabalho e Emprego, Art. 2º: “Não será permitida, de forma direta ou indireta, nos exames médicos por ocasião da admissão, mudança de função, avaliação periódica, retorno, demissão ou outros ligados à relação de emprego, a testagem do trabalhador quanto ao HIV.
Parágrafo único: O disposto no caput deste artigo não obsta que campanhas ou programas de prevenção da saúde estimulem os trabalhadores a conhecer seu estado sorológico quanto ao HIV por meio de orientações e exames comprovadamente voluntários, sem vínculo com a relação de trabalho e sempre resguardada a privacidade quanto ao conhecimento dos resultados.”
Nosso comentário: essa portaria foi emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, e é direcionada apenas aos que estão sujeitos à relação de emprego. Mas o que é relação de emprego? Trata-se de uma relação de trabalho que está calcada no regime celetista (CLT), como estabelece com seus empregados a maior parte das empresas. Os servidores públicos estaduais e municipais, por exemplo, podem estar submetidos à estatutos próprios que são omissos quanto a esse tema. Nesses casos essa portaria não teria validade (a menos que fosse objeto de discussão judicial ou administrativa, onde os efeitos dessa portaria fossem requeridos por analogia). Nesse sentido, veio a seguinte decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul:
EMENTA: “AGRAVO DE INSTRUMENTO — AÇÃO CIVIL PÚBLICA — CONCURSO PÚBLICO DE FORMAÇÃO PARA SOLDADO DA POLÍCIA MILITAR — TUTELA ANTECIPADA — PRESENÇA DA VEROSSIMILHANÇA DO DIREITO ALEGADO — EXIGÊNCIA DE REALIZAÇÃO DE EXAME DE HIV — ATO DISCRIMINATÓRIO — PERIGO DE DANO DE DIFÍCIL REPARAÇÃO — PREJUÍZO ÀS PESSOAS PORTADORAS DO VÍRUS — MANUTENÇÃO DA DECISÃO SINGULAR — RECURSO IMPROVIDO.” (AGV 1257 MS 2008.001257-3)
Obs.: para os servidores públicos federais já existe a Portaria Interministerial 869 / 1992:
Portaria Interministerial 869 / 1992: “Proíbe, no âmbito do Serviço Público Federal, a exigência de teste para detecção do vírus de imunodeficiência.”
Na mesma esteira, vem a Resolução 1.665 / 2003 do Conselho Federal de Medicina, Art. 4º: “É vedada a realização compulsória de sorologia para HIV.”
Um aspecto jurídico importante quanto ao tema veio em setembro de 2012, quando o TST enunciou a Súmula n. 443, que assim expressa:
“Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.”
Observamos que esta súmula presume como discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. No nosso entendimento, trata-se de uma presunção relativa, e, portanto, admite prova em contrário (juris tantum). Assim, caberá à empresa fazer essa prova.
Imaginemos: como uma empresa, que porventura tenha solicitado o teste de HIV (por intermédio de seu Médico do Trabalho/“Médico Examinador”) a um dos seus trabalhadores provará que não agiu com discriminação, sabendo que a simples solicitação desse exame já constitui um ato discriminatório e ilegal (nos termos da legislação exposta neste tópico)? Fica difícil. Nesse caso, o teste de HIV, na nossa opinião, pode ser a prova documental de que a empresa foi sim discriminatória, e portanto, esse trabalhador poderá, oportunamente, pleitear sua reintegração (e até sua estabilidade definitiva) no emprego, nos termos da Súmula n. 443 do TST.
Lembremos que o Médico do Trabalho/“Médico Examinador”, age como se empresa fosse, conforme interpretação extraída do art. 932, inciso III, do novo Código Civil. Casos como o narrado podem também ensejar indenizações por dano moral. Se a empresa for condenada a indenizar o trabalhador em virtude do dano moral causado por uma conduta ilegal e discriminatória do Médico do Trabalho/“Médico Examinador”, oportunamente, o empregador poderá entrar com uma ação futura contra esse médico no sentido de reaver a indenização paga ao empregado (ação regressiva — art. 934 do Código Civil).
Pelas normativas e riscos expostos, concluímos que não se deve solicitar sorologia para HIV de forma compulsória, em nenhuma hipótese.
Algumas perguntas são freqüentes sobre o tema:
a) No exemplo de um instrumentador cirúrgico: não há o risco de contaminação dos pacientes, caso ocorra um acidente com perfurocortante, e esse instrumentador seja HIV positivo? O Médico do Trabalho / “Médico Examinador” não deveria pedir o teste de HIV no exame admissional para os instrumentadores cirúrgicos?
R.: Há um incontestável risco de contaminação de pacientes, caso ocorra um acidente com perfurocortante envolvendo um profissional que seja HIV positivo (seja instrumentador cirúrgico, seja o próprio médico, etc.). Nossa legislação, no entanto, entende que apesar do risco evidente, não há fator impeditivo para que este profissional exerça a função de instrumentador cirúrgico, apenas pelo fato de ser HIV positivo. A razão é compreensível: que tipo de cuidado diferente para se evitar um acidente com perfurocortante tem o trabalhador que é HIV positivo, quando comparado a um trabalhador que tem sorologia desconhecida? Absolutamente nenhum! A prevenção deve seguir o mesmo rigor, para TODOS os trabalhadores (independente da sorologia). Dessa forma, a solicitação do teste de HIV é proibida, inclusive para trabalhadores da área da saúde, sob pena de ser qualificada como conduta discriminatória. Para reflexão: já imaginaram se todos os pacientes tivessem o direito de exigir sorologia de HIV, Hepatite, etc., para os cirurgiões que os fossem operá-los?
b) Voltando ao exemplo de um instrumentador cirúrgico, caso já tenha ocorrido o acidente com perfurcortante, mas não há confirmação que este instrumentador seja HIV positivo: poderá esse trabalhador se recusar a fazer o teste anti-HIV, caso solicitado?
R.: Sim. Vejamos o que diz o Manual de Condutas em Exposição Ocupacional à Material Biológico do Ministério da Saúde:
“A solicitação de teste anti-HIV deverá ser feita com aconselhamento pré e pós-teste do paciente-fonte com informações sobre a natureza do teste, o significado dos seus resultados e as implicações para o profissional de saúde envolvido no acidente.”
E continua:
“A recusa do profissional para a realização do teste sorológico ou para o uso das quimioprofilaxias específicas deve ser registrada e atestada pelo profissional.”
Percebemos que o próprio Ministério da Saúde considerou a possibilidade de recusa do profissional para realização do teste de HIV. Tanto assim, que preconizou o início da quimioprofilaxia preventiva em casos de acidentes com perfurocortantes, mesmo sem a certeza quanto à sorologia do paciente/trabalhador-fonte.
Pelo exposto, perguntamos também: de acordo com o Protocolo do Ministério da Saúde, qual a diferença de conduta pós-acidente quando se tem conhecimento que o paciente/trabalhador fonte é HIV positivo, quando comparamos com uma situação onde não se conhece a sorologia do paciente/trabalhador fonte? De novo, absolutamente nenhuma! A quimioprofilaxia preventiva será realizada, de igual forma, nos dois casos.
Ora, se despirmos honestamente de todos os nossos preconceitos, fica fácil entender porque a solicitação de HIV de forma compulsória é proibida, mesmo para trabalhadores que atuam em ambiente hospitalar: se as prevenções pré-acidentes e as condutas pós-acidentes são as mesmas para trabalhadores e pacientes HIV positivos, ou com sorologias desconhecidas, a ausência do conhecimento prévio da sorologia não gera prejuízo, nem na prevenção do acidente, nem nos procedimentos pós-acidentes. Qual seria a justificativa da obrigatoriedade da solicitação da sorologia de HIV, se não a justificativa discriminatória?
c) Solicitar exame para hepatite também é proibido?
R.: O tema HIV, por toda repercussão que provoca, conseguiu ser mais legislado do que outras situações de saúde. Nosso entendimento, é que a análise de hepatite, e todas as doenças de transmissão através do sangue, sejam feitas de forma análoga a análise do HIV, parcimoniosa e dentro do maior bom senso e discrição possíveis. Só não valem condutas discriminatórias!
d) Já que não é permitido pedir sorologia para HIV nos exames relacionados ao emprego, isso implica dizer que um trabalhador HIV positivo sempre estará apto ao trabalho?
R.: De forma alguma! O que a legislação entende é que não é pela sorologia de HIV que se define o “apto” ou “inapto”. Apenas isso. Agora, se o quadro clínico do trabalhador estiver incompatível com sua função, ele certamente deverá ser considerado “inapto” ao trabalho, sob pena de estar havendo omissão e negligência do Médico do Trabalho / “Médico Examinador” ao expor esse empregado à condições incompatíveis com seu quadro, condições estas que podem oferecer riscos ao próprio empregado.
Percebam: a inaptidão pelo empregado estar debilitado clinicamente é permitida (e necessária). Já a inaptidão apenas pelo fato do empregado ser HIV positivo (mesmo gozando de boas condições de saúde) é discriminatória, nos termos da legislação em vigor. Assim julgou o Tribunal Regional do Trabalho, do Rio Grande do Sul:
EMENTA: “RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA. DANO MORAL. DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. Hipótese em que demonstrado que a despedida resultou de ato discriminatório. Recurso desprovido”. (RO 0467-07.2010.5.04.0611)
No processo acima, a reclamante apresentou um atestado médico constando o CID B24 (HIV). Pouco mais de uma semana depois recebeu aviso-prévio, o qual, no entanto, foi anulado, pois o exame demissional a considerou “inapta”. A auxiliar foi encaminhada ao INSS. Como teve o requerimento de auxílio-doença indeferido, a reclamante recebeu novo aviso-prévio, o qual foi formalizado, após esta ser considerada “apta” para demissão em exame realizado por outro médico. Os desembargadores consideraram correta a sentença e o valor indenizatório, arbitrado em 8 mil reais. Para eles, os fatos demonstraram que a dispensa foi discriminatória, pois não houve sequer alegação da ré de que foram despedidos outros empregados, ou de que a despedida da trabalhadora decorreu de alguma justificativa econômica ou financeira.
Concluindo: por mais controverso que pareça aos olhos de muitos profissionais da saúde (médicos, inclusive), as leis brasileiras entendem que o fato do indivíduo ser HIV positivo não o impede, só por essa circunstância, do exercício de QUALQUER função laboral. Seja no serviço privado, ou serviço público federal (conforme normativas acima), a solicitação rotineira e obrigatória de teste para detecção de HIV configura-se como prática discriminatória. Na mesma esteira veio a Lei 12.984/2014, que assim colocou:
Art. 1 – Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente: (…)
II – negar emprego ou trabalho;
III – exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego;
IV – segregar no ambiente de trabalho ou escolar; (…).
Leia também:
Recomendação CFM n. 07/2014 (Recomenda a adoção de procedimentos, cuidados, tratamentos e precauções aos médicos vivendo com HIV ou com AIDS, assim como seus direitos.)